CINQUENTA TONS DE SOLIDÃO OU COMO COMECEI A GOSTAR DE APANHAR
Não
sento em frente ao computador para escrever desde os tempos da faculdade, na
época eu alimentava um blog com alguns textos de ficção e pensamentos sem
sentido, tudo escrito sob forte efeito de álcool e maconha. Recentemente voltei
a sentir a necessidade de escrever, talvez porque eu venha me sentindo,
constantemente, presa num dos meus contos depressivos e mal escritos da época
da UERJ ou talvez porque eu só precise compartilhar histórias da minha vida com
desconhecidos.
Meu
casamento terminou quando eu tinha pouco mais de trinta anos e não houve traições
ou grandes brigas, nós, apenas, não nos suportávamos mais. Iniciei, então, uma
árdua jornada de reconstrução da minha vida. Eu não sabia mais como fazer para
existir como indivíduo, passei muito tempo vivendo como casal, me sentindo um
casal, agindo como casal. De repente estava morando sozinha e sentindo
dificuldade para lidar com tarefas simples do cotidiano, coisas que eu havia
terceirizado nos últimos anos, como por exemplo, pedir água mineral, demorei
dois meses para conseguir ligar para o moço da água. Mas viver sozinha é mais
do que aprender a fazer tarefas corriqueiras é, sobretudo, aprender a lidar com
a SOLIDÃO. Logo comecei a chorar todos os dias ao acordar e em pouco tempo eu
já precisava despertar uma hora antes para poder chorar e ainda ter tempo de me
vestir para o trabalho. Ao final do primeiro mês após o divórcio minhas pálpebras
estavam tão inchadas que meus olhos ficavam constantemente semicerrados.
Instalei
o Tinder. Era bem complicado manter um diálogo com desconhecidas após o match,
eu sou uma completa analfabeta social, passei a maior parte da minha vida
trancada no meu quarto lendo, não sei como iniciar um flerte, não tenho histórias
empolgantes para contar, eu nunca nem saí do Rio de Janeiro, sou muito apegada
a minha rotina (acordo, leio, vou para o trabalho, chego em casa, como, leio e
durmo cedo) e a ideia de viajar sempre me pareceu um desperdício de dinheiro e
de tempo, prefiro gastar tudo o que me sobra com livros. Lembro-me que em certo
diálogo pelo chat do Tinder uma menina, fã de Star Wars, me perguntou o que
achei de O Despertar da força e eu respondi que achei medíocre, ela nunca mais
falou comigo, acho que até me bloqueou.
Confesso
que por algumas semanas eu fiquei obcecada com o aplicativo. Toda aquela
solidão que eu sentia num apartamento vazio de objetos, mas cheio de lembranças
da minha ex mulher começou a ser amenizada pelas breves conversas no aplicativo
de encontros. Logo comecei a sair com algumas meninas.
Eu
não ficava confortável fora de casa por muito tempo, sofro de Transtorno de
Ansiedade generalizada e muito tempo na rua me causava crises de pânico, não
era algo bonito de se ver, os encontros acabam sendo breves e invariavelmente
terminavam na minha casa. Como boa taurina eu gostava de sedução e, para mim,
não bastava só transar, eu tinha que servir um bom vinho tinto, colocar uma
música no Spotify, levar café da manhã na cama, mas nada disso me garantia uma
ligação no dia seguinte ou uma mensagem no Whatsapp, estávamos em plena cultura
do próximo (foi legal, próximo!), mas eu não conseguia me adaptar a essa
cultura, queria continuidade, queria
andar de mãos dadas, queria dar flores, queria companhia enquanto eu lia. Foram
duas, três, quatro, cinco, perdi a conta de quantas garrafas de vinho comprei,
de quantas vezes lavei taças, de quantas bandejas de café da manhã conduzi até
a cama, com o tempo eu já evitava chamar as meninas pelo nome para não me
confundir. Eu me sentia cada vez mais só, cada vez mais entediada, até os
gemidos delas, (eu não sentia nada, o antidepressivo e o antiansiolítico já me
davam todo o prazer que eu precisava, eu acho) começaram a me entediar, com o
tempo eu torcia para a roupa de cama não ficar muito molhada para eu não ter
que me dar ao trabalho de lavar. Distribuindo mais alguns coraçõezinhos no
Tinder conheci Karine, Chamei para sair, levei ao meu apartamento, música,
vinho, comida, cama. Quando ela estava gozando apertou meu braço tão forte que
eu quase gemi (de dor) e imaginei que fosse ficar roxo e ficou. No dia seguinte
fiquei observando aquela mancha roxa no meu antebraço e, pela primeira vez, desde
que entrei no Tinder, tive a sensação de que aquela menina havia me deixado
alguma coisa (ela também não ligou e respondeu friamente as minhas mensagens),
mas ela havia me marcado, era como se aquela mancha roxa dissesse: alguém
esteve aqui. E um novo ciclo se iniciou, logo comecei a procurar por meninas
que gostavam de ser um pouco mais “violentas” na cama. No começo eram só alguns
hematomas pelos braços, pernas, alguns chupões. No trabalho eu justificava as
marcas roxas dizendo que foi minha cadela pulando em mim, que eu cai bêbada, que
fui arranhada pela minha gata idosa. Eu sentia como se tivesse meu próprio
Clube da Luta, não me importava mais em não receber ligações ou mensagens, eu
gostava de ficar observando as marcas, sentindo aquela dorzinha por algum tempo,
por alguns dias às vezes, gostava do desenho que os arranhões produziam no meu
corpo, um dia eu pude jurar que a constelação de touro foi formada nas minhas
costas por uma generosa quantidade de sangue coagulado. Eu não sentia prazer na
dor, não era masoquista, eu me sentia menos só ao me olhar no espelho. Alguém
esteve ali, alguém tocou e marcou aquele flácido corpo de uma mulher sedentária
de trinta anos que passou a maior parte da vida trancada no quarto lendo.
Logo
me peguei pesquisando sobre BDSM no Google, entrando em grupos de sadomasoquismo,
comprando brinquedos masoquistas em lojas online. Pela primeira vez em alguns
meses eu finalmente consegui estabelecer alguma rotina na minha nova vida.
Talvez
eu fosse só muito covarde, não tinha coragem de me machucar e ficava procurando
pessoas que pudessem fazer isso por mim. Quando
estamos muito deprimidos a dor física nos parece uma alternativa a dor da alma,
uma possível saída dos labirintos da nossa mente para a vida real. E foi nessa busca
que conheci a Clara. Mais uma vez iniciei o meu ritual: vinho, música, comida,
cama. A Clara era o tipo de garota privilegiada, branca, cabelos longos, loura,
olhos claros, magra e, aparentemente de classe média alta. Além de muito bonita
demonstrava bastante cultura e um excelente domínio da língua portuguesa, isso
me encantou. Eu estava (quase) feliz por ter alguém com quem conversar por
algum tempo. Foram quase duas horas de conversa no meu sofá até ela se convidar
para a minha cama. Foi maravilhoso ver aquela mulher linda gozando na minha
boca várias vezes e gemendo loucamente enquanto me arranhava toda, eu teria
lembranças físicas por semanas. Lá pelas três horas da manhã adormeci, mas meu
sono era muito leve e inquieto, com qualquer barulho eu despertava. Naquela
noite não foi diferente, acordei e dei de cara com a Clara já vestida colocando
objetos da escrivaninha na sua bolsa, perguntei o que estava havendo e ela
pulou como os gatos fazem quando estão assustados, enfiou a mão no fundo da
bolsa e sacou algo que nunca vi tão de perto: um revolver. Eu estava nua na
minha cama e uma garota desconhecida (será que Clara era mesmo o seu nome? Sempre
quis dizer isso) estava apontando uma arma para mim, definitivamente eu havia
enlouquecido e estava presa num dos meus contos da época da graduação, da época
em que eu sonhava em ser escritora, antes de eu virar Escriturária do Banco do
Brasil e passar os meus dias desbloqueando senhas de idosos e tentando bater
metas. Não fiquei com medo em momento algum, eu estava num dos meus contos,
estava segura. Ela começou a caminhar em direção a porta da sala e eu lentamente
fui atrás, lembro dela me pedindo a chave e eu, calmamente, retirando-a do meu
porta chaves LOVE e depositando-a na sua mão direita. Tranquei a porta após ela
sair, voltei para a minha cama e dormi, apenas no dia seguinte quando despertei
e dei falta do meu tablet, meus cartões de crédito, uma pequena quantia em
dinheiro que eu deixava na gaveta da escrivaninha e alguns objetos de decoração
que percebi que foi real, que eu não estava vivendo num conto, que eu estava
fodida, que eu estava toda machucada física e emocionalmente. Comecei a rir,
logo estava gargalhando e gargalhando, mandei uma mensagem para a minha gerente
dizendo que eu não poderia ir e continuei gargalhando por umas duas horas.